segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A Rainha do Engenho





O diabo, de tanto tentar se enfeitar,
acabou ficando com a cara torta.

- Pode deixar que eu compro as flores!
Beijou o neto que dormia em sua cama e saiu para o trabalho.
Eram 5:50. Graças a estação Engenho da Rainha, podia se dar ao luxo de sair de casa às seis e caminhar com calma até o metrô.
Estava especialmente cansada naquele segundo sábado de maio, desanimada até. As varizes doíam, mas o senso de responsabilidade não desanimava. Nunca.
Moradora antiga do Engenho Da Rainha, Ceci era muito conhecida e respeitada no bairro. A mãe, morena bonita, descendente dos Tamoios, tinha sido amante de um músico, morador de famoso conjunto habitacional da região. O Pai: desconhecido.
Geralmente, saltava na estação Cantagalo, mas hoje resolveu pegar o ônibus que faz a integração até Ipanema. Assim, não caminharia tanto.
Às 7:30 vestia uniforme de doméstica, passado e engomado, com capricho, por ela mesma.
Começou pela sobremesa: pavê de nozes. Depois, enquanto o lagarto cozinhava, descascou as batatas, lavou as folhas, fez o arroz. Colocou a louça que ia ser usada na lavadoura, separou os talheres. Fez um chazinho para dona Tereza (a patroa) que estava indisposta.
Ao meio-dia estava pronta para voltar para casa e começar o tradicional almoço de dia das mães. O cardápio era quase igual. O pavê não teria nozes, e ao invés de folhas preferia um guizado.
Antes de sair, a patroa ainda pediu que acendesse uma vela na Igreja de Nossa Senhora da Paz. Era uma promessa que Dona Tereza não queria quebrar, mas indisposta como estava, teve que recorrer à amiga.
Ceci não gostava de passar nesta Igreja. Foi lá que morreu o mais ilustre vizinho, morador do Conjunto Habitacional dos Músicos: Alfredo da Rocha Viana Filho, o Pixinguinha. Mas, não seria de todo ruim, aproveitaria para rezar pelo seu filho caçula, Nelsinho, menino fraco, que não conseguia largar o vício.
Pegou o metrô de volta.
Adorava o nome do seu bairro. Sabia um pouquinho da história também. Engenho era a fazenda de cana-de-açúcar onde Dona Carlota Joaquina, a rainha, ia descansar. Pensava divertida.
Passou numa feirinha, comprou um par de chinelos para dona Bira, solteirona, velha amiga da família, e que com certeza, coitadinha, não ganharia nada no dia das mães!
No sacolão, comprou os legumes para o guizado, encontrou Dirce, sua manicura, e confirmou a hora.
Sábado por volta das cinco era a hora do descanso de Ceci. Dirce ia para lá e entre esmaltes, lixas e alicates as duas bebiam uma Malzebier bem geladinha, falavam da vida, delas e da dos outros, é claro.
Não teve coragem de recusar o pedido da amiga. Dirce queria fazer bonito, causar inveja às cunhadas, e levar uns rissoles para a festa do dia das mães na casa da sogra.
Terminou de fritar os rissoles lá pelas 10 e despediu-se de Dirce.
Tomou banho, trocou a fralda do netinho e já deitada ouviu as reclamações do marido.
Há muito que ele não dava nem bom dia, nem boa noite. Falava de suas dores da hora que acordava, até a hora de dormir. Não se calava nem dormindo, roncava até quase sufocar a noite toda.
Só faltavam as flores, pensou.
Acordou na hora de sempre, pensou em não comprar as flores, estava cansada demais e afinal as flores eram para ela mesma.
O telefone tocou. Cíntia, a filha mais velha, deixaria as crianças lá. O marido tinha saído para beber, ainda não voltara e ela iría atrás daquele cachorro.
Nelsinho ainda não tinha chegado. O marido acordou e agora tinha mais motivos para reclamar: As crianças de Cíntia corriam aos berros pela casa enquanto a babá (a televisão) se esgoelava em vão.
Serviu o café para o marido, que desta vez reclamou estar fraco.
Pegou o dinheiro das flores.
Quando saía, entraram Cíntia com o marido cachorro e Nelsinho, bêbado como um gambá. Dona Bira, a solteirona, não viria, estava constipada.
Fechou o portão.
Foi encontrada dias depois, sentada numa pracinha, embaixo de um pé de abiu, agarrada a um vaso de orquídeas. A tudo o que lhe perguntavam, respondia com o olhar perdido:
-Sim!

2 comentários:

Maria Augusta disse...

Que história linda e comovente, retrata o dia-a-dia da "brava gente brasileira". Pessoas assim são verdadeiras heroinas, carregam a família nas costas...
Você escreve muito bem, gostei demais. E a imagem da casinha cor de rosa é muito bonita, tem uma grande doçura.
Abraços e uma boa semana para você.

Jôka P. disse...

Que incrível, Marcia ! ADOREI !