O meu avô
A primeira lembrança que eu tenho do meu avô é a de ver minha imagem refletida em seu carro preto, oficial, impecavelmente lustrado por um santo motorista.Eu tinha cinco anos, um cabelo loirinho, franjinha, vestidinho azul turquesa.
A imagem ficava totalmente distorcida como numa casa de espelhos. Volta e meia o motorista passava uma flanela, e eu não me atrevia a tocar no carro.
Depois me lembro de ver vovô chorando e fazendo chantagem emocional: Mamãe histérica resolveu dar educação para todos, para nós três , eu Rodrigo e Duda ao mesmo tempo, e cada vez que errávamos ou riamos com a loucura dela, mais brava ela se tornava, neste dia ela chegou a morder a mão do Rô, entortar o garfo na minha, dar uns tapinhas na do Duda e a Tati ficou rindo dela também, mas por detrás do copo. Vovô chegou e não gostou nada daquilo, disse que ela parasse, e ficou com os olhos, azul turquesa, marejados. Neste dia disse que não se hospedaria mais lá em casa, ficaria no apartamento funcional.
Quando viemos morar no Rio de Janeiro me lembro de estranhar muito e não entender o que vovô queria dizer. Ele dizia que olhássemos com os olhos, e nunca soube que podemos olhar com as mãos, os ouvidos , os pés e o nariz.... basta termos a curiosidade.
Vovô era disciplinado e queria disciplina, e eu pé descalço e desordeira de nascença, nunca o entendia.
Vovô foi injustiçado em seu trabalho e saiu do emprego. Eu que ouvi conversa de adulto tomei as dores de vovô. Vovô e Vovó não entenderam porque eu sempre tão simpática, não quis cumprimentar um certo dr tomé. Que eu tinha entendido, nas conversas de adulto, ser o culpado pela injustiça que fizeram ao meu avô.
Na temporada que eu Tati e Rô passamos no Rio sem nossos pais, vovô me levava para a escola, a pé. Eu segurava em sua mão, melhor eu segurava seu dedo polegar e ia ouvindo pelo caminho _”anda ligeiro menina, anda ligeiro...”.
Vovô não entrava em taxi fusquinha. De jeito nenhum.
Às quintas feiras, vovó tinha aula de porcelana e nos deixava sob os cuidados dele, e ele não tinha dúvida, botava todo mundo para dormir.
Um dia vovô ficou nos ajudando nos deveres de casa, e sem paciência nenhuma me obrigou a fazer uma letra que não era minha, ficou realmente legível, mas a professora nem acreditou que aquela era minha letra. Até hoje tenho uma letra linda, uma não, várias! Vovô neste dia me chamou de burra e disse que eu ia comer capim no jantar.
Nesta mesma temporada, cansado de ver a vovó impaciente para ensinar a minha irmã a fazer o crochê, vovô pegou a linha e a agulha e com paciência procurou mostrar à Tati como se fazia. Ficou engraçado o contraste daquele dedão com uma agulha de crochê!
Vovô adorava doce bem doce, assobiava bem alto, arrregalava os olhos e colocava a dentadura inferior para frente. Tinha medo de ladrão, olhos azuis turquesa, pele vermelha, sardas, dedos grossos, cabelo branquinho com gumex, cheiro de perfume, vovô tinha um lenço muito perfumado, era limpinho.
Vovô me deu um radinho em forma de dadinho que eu amei.
Vovô me chamava de cara suja (por causa das sardas), vivia me ligando para perguntar se eu tinha lavado o rosto naquele dia, comprava sabonetes especiais, só de brincadeira, para eu lavar o rosto. Eu hoje em dia amo ganhar sabonetes.
Vovô não gostava que o chamassem de você. Vovô era discreto, honesto, ingênuo. Vovô era muito briguento, ficava vermelho como um tomate e raios e trovões....
Torcia pelo flamengo que se perdesse, raios e trovões....
Vovô comprava o pão na padaria, lavava as garrafas com feijão dentro e ajudava a tirar a mesa do lanche. Usava ternos impecáveis, sapatos bem lustrados.
Vovô tinha ciúmes de mim com a vovó e vivia implicando comigo, eu não entendia isso e sempre acabava respondendo mal.
Até que eu cresci, amadureci e da última vez que nos falamos ele já bastante afetado pelo mau de alzeihmer quis implicar comigo e eu desta vez não dei o cavaco como ele dizia, e ele muito emocionado e arrependido chegou perto de mim e me pediu desculpas por ter falado comigo daquele jeito, e eu calmantente disse -não tem problema vô, quando nos gostamos agimos desta forma também!
No dia seguinte a este vovô foi internado na primeira de uma série de idas e vindas do cti.
Vovô sofreu muito, foi parar até no asilo.
Vovô sofreu muito, foi parar até no asilo.
Eu o visitei uma vez no hospital do exército, e foi horrível eu chorei muito, e ele se machucava tentando arrancar o soro a todo custo, ele estava muito magrinho e usava fraldas. Depois eu o visistei no asilo, e já não chorei tanto, quando comecei a chorar ele me olhou como quem me dissesse, calma minha filha, são coisas da vida.
Depois vovô voltou para a casa, e eu também não gostava de visitá-lo, tinha minha vidinha egoísta e também tinha meus problemas.
Mas a última vez que eu o vi, ele me olhou, e já não falava mais com a boca, só com os olhos, e ele me olhou e saiu uma lágrima de seus olhos azuis turquesa. Eu achei que ele me perguntava como iam as minhas filhas, (pergunta recorrente sempre que ele me via) e eu disse que elas iam bem, que a mais velha estava com 9 anos e a caçula com sete.
E... depois eu falei daquele jeito com que falamos com as crianças e os velhinhos:
-Vô, e o flamengo hein?! Ele fez uma carinha de quem tinha entendido e queria saber como ia o flamengo, e o flamengo ia mal.
Depois disso vovô morreu.
E...Até hoje eu vejo a minha imagem distorcida, mas já não é mais no carrinho preto e bem lustrado dos cinco anos.
Porque você não escreve sobre o seu Avô também eu ia gostar de saber como ele era.
Bjs da Paçoca
Um comentário:
Paçoca,não tive a felicidade de conhecer meu avô.Minha família se afastou quando eu era criança e só fui conhecer meus parentes depois de adulta. Pela sua descrição vejo que seu avô se parecia muito com meu pai. Fiquei comovida. Um grande beijo.
Maria Amelia
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