quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Qualquer semelhança...



Um dia na vida de Miranda L.

Eu ando sozinha no meio do vale.

Mas a tarde é minha

(Canção da tarde no campo, Cecília Meireles, 1967)

Acordou às 4:30 da madrugada e, temendo acordar alguém; perder o silêncio; ou ser solicitada para um copinho d’água; nem acendeu as luzes, subiu, e foi direto para o computador. A quarta-feira demorou, mas chegou. Precisava “arredondar” aquela crônica de qualquer jeito. Releu o texto, tentou consertar a pontuação. Releu mais uma vez, tentou mais uma vez. Distraiu-se e, o preguiçoso sol de inverno, já estava nascendo bem ali atrás do Pão-de-Açúcar.

Preparou o café, levou a filha mais velha, à escola. Na volta aproveitou para parar no supermercado. Deixou as compras no elevador e “interfonou” para Simone (sua nova ajudante) pegá-las. Atravessou a rua e fez o orçamento do material para a pintura do apartamento. Deu uma passadinha nas “Lojas Americanas” pediu ao gerente caixas vazias. Carregou as que pode até em casa. Fez os bolinhos da encomenda (vende bolinhos para negar o ócio). Hoje, não daria tempo de fazer a caminhada e teria que adiar novamente o retorno à natação. Pegou as crianças na escola. Deixou os bolinhos no cliente. Levou uma filha ao vôlei, a outra no inglês. Passou no banco, pagou as contas, pegou dinheiro. Deu instruções para o jantar. Buscou o carro, do marido, na oficina. Abraçou a pastinha com os textos e saiu mais cedo para o “curso de oficina da crônica” (como gosta de chamar).

De volta, a caçula pediu que a ajudasse a estudar História. O marido chegou do trabalho, e ela, ainda às voltas com gregos e troianos, pediu: - Será que você poderia pegar a Carlinha, na casa da Bia, para mim?

- Agora nem isto mais você faz? (respondeu o marido).

Suspirou, pegou chave e documentos do carro e saiu.

No demorado caminho, que separa o Jardim Botânico de Botafogo, àquela hora, coloca o único cedê que tem no carro e despudoradamente acompanha, aos berros, o Chico Buarque. Joga pedra na Geni, ela pode nos salvar, ela vai nos redimir... Eu enfrentava os batalhões os alemães e seus canhões... Morreu na contra-mão atrapalhando o sáaaabado... Amanhã vai ser outro dia... Já no terceiro “eu te amo” chega ao destino, pega a filha e retorna a Botafogo. Brinca com o porteiro. - Seu Antonio, por favor, tranque a portaria e jogue a chave fora. Não deixe que eu saia nem pro meu enterro!

-Terminou por hoje dona Miranda?

- Ainda não, estou quase. Falta o jantar, pensou.

Mesmo bastante cansada, reparou no capricho com que Simone tinha deixado cortados os legumes para a sopa. Aqueceu o azeite, refogou a cebola até quase dourar, acrescentou a abóbora, esperou que ela soltasse toda água, para, só depois, acrescentar o caldo de legumes. Enquanto isto, no forno os cubinhos de pão vão pegando cor.

Serve a sopa, senta-se à mesa e...

- Mãe, você sabe que eu não gosto de sopa de abóbora!

- Não é para gostar filha, é para comer sem gostar mesmo!

O marido (sabe-se lá porque) sente gosto de pimentão na sopa e ameaça não comer. Ela acha graça. Orgulha-se do inabalável bom humor “àquelas alturas do campeonato”

- Esta sopa está sem sal, reclama um terceiro.

Reconhece. Salga suas comidas como pontua seus textos: às vezes sal demais, outras vírgulas de menos!

Toma banho, passa os cremes e veste o bem humorado pijaminha vermelho de bolinhas verdes, que mesmo apertado, não consegue mudar seu estado de espírito. Está feliz. Suspira. Em outros tempos, depois de um dia como o de hoje, além de estar com um humor de cão, não teria ânimo para mais nada. Mas, ainda fez questão de escrever uma cartinha contando as novidades, da vida nova de cronista, para a sua analista que, (provavelmente, impedida pelo Dr. Freud) nunca responde. Escreveu à mão, com todo o capricho. E, finalmente, já deitada fez, orgulhosa, mais um xis na folhinha: Oitenta dias sem tomar o “maldito Tarja Preta”.

2 comentários:

Anônimo disse...

Paçoca, esqueça a tarja preta. Meditando você não vai mais precisar dela.Um beijo,
Severina

Maria Augusta disse...

Que bom que foi um dia vitorioso!
Beijos.